quarta-feira, janeiro 17, 2007

Campainha


O cachimbo ainda fumegava sem sono sobre a mesa da sala, a lareira largava um olhar vermelho relaxado. Ele soltava um sorriso de felicidade e o batimento de pé acompanhava o jazz que a aparelhagem lhe dava. O vídeo piscava incessantemente a meia-noite a azul o que lhe permitia esquecer-se que amanha era dia de trabalho e já devia ressonar bem alto. Hoje sabia-lhe bem a noite e não lhe apetecia abdicar dela. O contrabaixo batia-lhe contra o peito e fazia-lhe vibrar o coração. Já não se lembrava de uma noite tão saborosa desde que Lurdes partira.
O seu meio século de vida não lhe parecia pesar nas pálpebras naquela noite de Inverno. E não havia nada que explicasse a sua boa disposição. O Inverno sem a mulher tornara-se mais confortável do que o verão porque o luto da sua face não se notava tanto. O da roupa nunca se notara. Vestiu uma gravata vermelha a primeira vez que foi trabalhar depois da morte de Lurdes. Sem medos. Hoje essa mesma gravata parecia arder em cima do sofá por culpa do reflexo das brasas.
Sentou-se então junto ao vidro a 4 andares do chão, e olhou para o céu que sorria negro. Um avião ia pintando o céu com pontos vermelhos e azuis. Do lado de fora uma gota lambeu-lhe o reflexo. Mas caiu de forma tal que lhe escorria na face esbatida do vidro. Sentiu nas costas um frio maior do que se a gota lá tivesse aterrado. Nem dez anos de viuvez lhe apagavam a falta que ela lhe fazia. Nunca tivera outra mulher, apesar dos encontros que os amigos lhe tentavam arranjar, ou dos convites para locais menos próprios que os colegas lhe faziam na esperança de lhe dar um pouco de ânimo. Ele sentia que dentro do caixão da mulher tinha deixado não só a capacidade de sentir mas também a sexualidade que invejava qualquer casal. Ela tinha sido o calor que sempre desejava e nem dez anos de solidão o conseguiriam convencer que ela era substituível.
Voltou ao sofá para a companhia do cachimbo. Cantou freneticamente as últimas palavras que o velho homem negro dizia do outro lado da coluna. E com um crescendo final a música acabou e com ela regressou o silêncio. Mas durou apenas o tempo suficiente para vermelho se esconder debaixo das cinzas na lareira. Durou até os 4 tons formando uma espécie de música se soltar do elevador. Com um segundo de silêncio de intervalo a música recomeçou com uns tacões marcando o ritmo na tijoleira do corredor. Só então a campainha cantou.

1 comentário:

styska disse...

gosto pq está bem escrito. gosto da estória. gosto da dureza da realidade e gosto da doçura. pq escreveste uma coisa triste mas de um modo doce e maduro. gosto da profundidade.
está lindo!