sexta-feira, maio 26, 2006

Tecto



Enquanto espremia a esponja olhou para o relógio cheio de legumes na parede, já era tarde, o filho já dormia há algumas horas, mas ainda lhe esperavam umas quantas tarefas antes de poder ouvir a almofada falar. Limpou as mãos e deixou o pano sobre a louça recém-lavada.Saiu da cozinha e deixou a penumbra atrás. A televisão rodava ainda novelas que Raquel já não sabia o nome. A sua própria novela consumia-a demais para que pudesse ficar especada a ver um bando de gente nas situações mais tristes. Mudou para um canal musical enquanto estendeu a tábua de engomar. Lentamente foi fazendo a pilha de roupa diminuir enquanto ia trauteando algumas das canções que passavam no ecrã. Quando por fim acabou de passar a última camisola do filho empurrou a tábua para um lado e fez os seus pés voar por um pouco. A música era lenta e cheia de violinos, mas sem ser aquelas musicas demasiado velhas para se dançarem. Mas ela não dançava, voava, descalça na carpete cheia de flores de cores esbatidas. O frio da neve lá fora ainda se fazia sentir mas ela sentiu-se na primavera enquanto ia voando. Olhando para baixo imaginou uma saia branca larga em vez das calças de ganga que lhe apertavam as pernas. A música acabou e ela acabou por se sentar olhando a noite escura lá fora. A neve já se tinha desfeito, e se restasse alguma era impossivel de ver pela ausencia da lua. Mas ela olhava para o negro como procurando alguma coisa que não a neve. Mas era a sua própria solidão que acabava por ver reflectida no vidro. O pai de Filipe há muito que tinha saido da sua vida e do seu coração, mas ela ao contrário dela não conseguia tão facilmente encontrar um homem que lhe servisse e ao seu filho. E a solidão pesava-lhe mais que tudo. Mais que ver o filho ser o ultimo a sair do ATL, ou do que ter de passar o chão da cozinha à uma da manhã. Pesava-lhe a solidão, mas o que mais sentia falta era o peso de outra mão na sua. Desligou a televisão, foi ao quarto do Filipe cobri-lo e deitou-se esperando pelo sono, mas o tecto do quarto ainda iria permanecer nos seus olhos durante algum tempo.

1 comentário:

Liliana Bárcia disse...

"Mas ela não dançava, voava, descalça na carpete cheia de flores de cores esbatidas (...) Olhando para baixo imaginou uma saia branca larga em vez das calças de ganga que lhe apertavam as pernas"

Que bonito, parece um sonho no meio da solidão..

prefiro comentar todos os textos q li agora.. gostei do "violino", gosto do som do violino e a ideia de q a amizade pode ser feita entre sorrisos e tristeza..
a "varanda" troxe-me à memóriauma conversa recente: "Ontem perguntei-te se querias ser meu amigo" mas "mudaste de assunto" e o que eu queria era "voltarmos atrás".

Estes textos adivinham ser algo bastante real para mim, sentimentos como o poder q a amizade e os sonhos têmcomo forma de ultrapassar todos os nossos pesadelos e escuridão..