terça-feira, janeiro 30, 2007

Fechadura

O barulho da fechadura confundia-se sempre com o cair das chaves na taça da mesa da entrada. A dois passos de dedos agarrou o comando sentado ao lado da taça. Pressionou o triângulo deitados uma voz rouca começou a cantar uma história de amor. Pendurou o sobretudo negro no cabide da entrada deixando à vista a camisa branca já estripada da gravata. Calcou o corredor até à sala e pousou na mesa o jantar aconchegado num saco de papel. Largou-se no sofá como morto e olhou o tecto. O senhor na aparelhagem bateu-lhe na palavra certa. Love. Estava apaixonado. A pouca familiaridade com o tecto tornou real a sua suspeita de que já não estava assim há muito tempo. Sorriu e com o seu sorriso o telemóvel começou a tremer no seu peito. Tirou telemóvel do bolso da camisa e o nome dela apareceu-lhe imediatamente.
-Estou-disse ele com o sorriso a ouvir-se melhor que as palavras.
-Anda cá jantar - A sinceridade dela era tão directa que o assustava tanto como o apaixonava.
-Dá-me 20 minutos.
-Dou-te 15, uma garrafa de vinho e um balde de gelado de nozes e caramelo. Até já.
Ele levantou-se num ápice e foi com pressa até à cozinha. Tirou uma garrafa de uma caixa ao lado do frigorifico e apressou-se a vestir o sobretudo. Agarrou de novo as chaves e atirou a porta à sua passagem. O senhor calou-se na aparelhagem e a lua já estava alta quando a fechadura se voltou a ouvir. Desta vez as chaves demoraram a cair na taça. Corria-lhe no sangue demasiado álcool e felicidade o que lhe atrasava os movimentos. O comando estava longe e ao chegar a sala viu que a aparelhagem iluminava a sala com as palavras Unknown Album. Acercou-se dela tirou o cd e introduziu um disco negro. No segundo exacto antes de o piano começar a tocar ouviu-se uma campainha no corredor. Simão não ouviu, estava demasiado ocupado a olhar para o céu e para as luzes de algumas casas ainda visiveis. Deitou-se no sofá e adormeceu ouvindo o piano que o embalava.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Campainha


O cachimbo ainda fumegava sem sono sobre a mesa da sala, a lareira largava um olhar vermelho relaxado. Ele soltava um sorriso de felicidade e o batimento de pé acompanhava o jazz que a aparelhagem lhe dava. O vídeo piscava incessantemente a meia-noite a azul o que lhe permitia esquecer-se que amanha era dia de trabalho e já devia ressonar bem alto. Hoje sabia-lhe bem a noite e não lhe apetecia abdicar dela. O contrabaixo batia-lhe contra o peito e fazia-lhe vibrar o coração. Já não se lembrava de uma noite tão saborosa desde que Lurdes partira.
O seu meio século de vida não lhe parecia pesar nas pálpebras naquela noite de Inverno. E não havia nada que explicasse a sua boa disposição. O Inverno sem a mulher tornara-se mais confortável do que o verão porque o luto da sua face não se notava tanto. O da roupa nunca se notara. Vestiu uma gravata vermelha a primeira vez que foi trabalhar depois da morte de Lurdes. Sem medos. Hoje essa mesma gravata parecia arder em cima do sofá por culpa do reflexo das brasas.
Sentou-se então junto ao vidro a 4 andares do chão, e olhou para o céu que sorria negro. Um avião ia pintando o céu com pontos vermelhos e azuis. Do lado de fora uma gota lambeu-lhe o reflexo. Mas caiu de forma tal que lhe escorria na face esbatida do vidro. Sentiu nas costas um frio maior do que se a gota lá tivesse aterrado. Nem dez anos de viuvez lhe apagavam a falta que ela lhe fazia. Nunca tivera outra mulher, apesar dos encontros que os amigos lhe tentavam arranjar, ou dos convites para locais menos próprios que os colegas lhe faziam na esperança de lhe dar um pouco de ânimo. Ele sentia que dentro do caixão da mulher tinha deixado não só a capacidade de sentir mas também a sexualidade que invejava qualquer casal. Ela tinha sido o calor que sempre desejava e nem dez anos de solidão o conseguiriam convencer que ela era substituível.
Voltou ao sofá para a companhia do cachimbo. Cantou freneticamente as últimas palavras que o velho homem negro dizia do outro lado da coluna. E com um crescendo final a música acabou e com ela regressou o silêncio. Mas durou apenas o tempo suficiente para vermelho se esconder debaixo das cinzas na lareira. Durou até os 4 tons formando uma espécie de música se soltar do elevador. Com um segundo de silêncio de intervalo a música recomeçou com uns tacões marcando o ritmo na tijoleira do corredor. Só então a campainha cantou.

sexta-feira, maio 26, 2006

Tecto



Enquanto espremia a esponja olhou para o relógio cheio de legumes na parede, já era tarde, o filho já dormia há algumas horas, mas ainda lhe esperavam umas quantas tarefas antes de poder ouvir a almofada falar. Limpou as mãos e deixou o pano sobre a louça recém-lavada.Saiu da cozinha e deixou a penumbra atrás. A televisão rodava ainda novelas que Raquel já não sabia o nome. A sua própria novela consumia-a demais para que pudesse ficar especada a ver um bando de gente nas situações mais tristes. Mudou para um canal musical enquanto estendeu a tábua de engomar. Lentamente foi fazendo a pilha de roupa diminuir enquanto ia trauteando algumas das canções que passavam no ecrã. Quando por fim acabou de passar a última camisola do filho empurrou a tábua para um lado e fez os seus pés voar por um pouco. A música era lenta e cheia de violinos, mas sem ser aquelas musicas demasiado velhas para se dançarem. Mas ela não dançava, voava, descalça na carpete cheia de flores de cores esbatidas. O frio da neve lá fora ainda se fazia sentir mas ela sentiu-se na primavera enquanto ia voando. Olhando para baixo imaginou uma saia branca larga em vez das calças de ganga que lhe apertavam as pernas. A música acabou e ela acabou por se sentar olhando a noite escura lá fora. A neve já se tinha desfeito, e se restasse alguma era impossivel de ver pela ausencia da lua. Mas ela olhava para o negro como procurando alguma coisa que não a neve. Mas era a sua própria solidão que acabava por ver reflectida no vidro. O pai de Filipe há muito que tinha saido da sua vida e do seu coração, mas ela ao contrário dela não conseguia tão facilmente encontrar um homem que lhe servisse e ao seu filho. E a solidão pesava-lhe mais que tudo. Mais que ver o filho ser o ultimo a sair do ATL, ou do que ter de passar o chão da cozinha à uma da manhã. Pesava-lhe a solidão, mas o que mais sentia falta era o peso de outra mão na sua. Desligou a televisão, foi ao quarto do Filipe cobri-lo e deitou-se esperando pelo sono, mas o tecto do quarto ainda iria permanecer nos seus olhos durante algum tempo.

domingo, maio 21, 2006

Sofá



Está a nevar... Já nem sei o que sinto pela neve, vejo os miudos lá em baixo a sujarem-na na estrada enquanto se apercebem da efemeridade da coisa. A televisão vai resmoneando vidas de gente que acabou de ganhar os seus 5 minutos. Estou no sofá a pensar em ti. Com este frio parece que ainda me faz mais falta o teu corpo aqui encaixado. Precisavamos de uns longos momentos de tetris humano para nos conseguirmos deitar os dois neste sofá minúsculo. Sinto falta do tétris, sinto falta dos teus pés a apararem-me a cabeça. Ainda que com os pés sempre me apoiaram e aqueciam, e agora que me cansei deles sinto falta do seu apoio.

Quis comprar umas almofadas outro dia. Fui a um desses sitios em que os sofás são tão bonitos e arejados que todas as almofadas lá ficam bem. Quando as trouxe para casa apercebi-me que ficavam mal e eram duras.Tu foi ao contrário, só quando te disse que não voltasses mais ao sofá é que me apercebo de como cá ficavas bem. Eu sei que é infantil e até muito pouco racional, mas chego a procurar o teu cheiro no tecido vermelho. Chego até a pensar que antes de ires atiraste com lexívia para que o sofá ficasse menos vermelho e mais pálido. E no entanto fui eu que quis que fosses. E agora este orgulho não me deixa pedir que regresses.

Ouço a vizinha da frente resmungar alto qualquer coisa mas já nem ligo. Nem que seja para mim, já não me importa. Fecho as cortinas, desligo a televisão e deito-me no chão a olhar o tecto.